Soma Zero: Uma história Cyberpunk

15 min para ler

Recentemente, colocamos no ar a versão em inglês de nossa HQ, então achei legal falar mais um pouco dela aqui.

SOMA ZERO se passa em Nova São Paulo, 2075. Depois de uma operação que dá errado, o hacker Zero é obrigado a fugir da Polícia Privada e vai parar nas favelas da cidade velha, onde conhece Max Deltree: um punk de meia-idade que o ensina a sobreviver.

A HQ foi criada por mim e pelo Gabriel Coppola; trabalhei no roteiro e diagramação e ele na arte. Ela está disponível online para a leitura, mas também publicamos a primeira parte (SOMA ZERO: A QUEDA) com a ajuda de recursos da Lei Paulo Gustavo de Marília-SP.

Soma Zero se passa no mesmo universo que minhas outras histórias de ficção científica, mas teve sua origem no jogo Cyberpunk Red.

Depois de jogar Cyberpunk 2077, o Gabriel queria conhecer o RPG. Então nós jogamos uma pequena história um-a-um. Como ele era o único jogador, usei de suporte um personagem velho de Cyberpunk que criei em 1998, chamado Max Deltree. O Gabriel criou um hacker chamado Zero, e eu usei o Max Deltree como um punk de meia-idade cujo ápice da vida foi em 2020, e que constantemente reclamava de como as coisas eram melhores na época dele.

Nós curtimos muito a história que criamos, portanto decidimos transformá-la em uma HQ. Então foi questão de adaptar a história para meu próprio mundo cyberpunk e o enredo para uma história fechada, em cinco atos.

Por hora, a história foi dividida em duas partes: A Queda e a Ascensão, sendo que a Queda foi publicada (com os dois primeiros atos), e a Ascensão deve ficar pronta no ano que vem. Porém, os capítulos serão publicados nos portais online (Fliptru em português e Manga Plus Creators em inglês) conforme forem concluídos.

É um projeto feito com todo carinho e espero que vocês gostem.

Onde ler:

Versão em português.

Versão em inglês.

Onde comprar:

Link da Amazon.br

Abaixo, uma reportagem dentro do mundo da história, que mostra as mudanças que levaram ao cenário de Nova São Paulo em 2075.

VINTE ANOS DAS GUERRAS EXPONENCIAIS

por

Alex Pryde

Vinte anos se passaram e ainda sentimos os efeitos das guerras exponenciais. Foi um marco histórico, não tem como negar. E vamos sentir seus efeitos por mais um bom tempo.

Esse mês comemoramos vinte anos do final da guerra, aí você soma os cinco anos que a guerra durou e pode adicionar mais dez de tudo aquilo que levou a ela. O resultado dessa soma representa um longo período de sofrimento.

Eu enchi o rabo de dinheiro cobrindo aquela guerra, dinheiro que já veio lambuzado de sangue e suor. Muito desse sendo não só o meu próprio, mas também o de todo mundo que deu suas vidas a causas fabricadas.

Não vou encher o saco de ninguém sobre os motivos que levaram às guerras exponenciais. Todo mundo já está cansado de saber. A não ser que você passou as últimas décadas debaixo de uma pedra, ou quem sabe é um desses malucos que pagaram uma fortuna para serem congelados em câmaras criogênicas e foram acordados hoje, mais aí provavelmente você não está lendo essa revista. Isso porque a CryoClass faliu e teve de acordar todo mundo que estava dormindo, mesmo quem pagou para ficar congelado por séculos. Os donos da empresa fugiram para o exterior e devem estar torrando a fortuna dos vários ricaços que acordaram esse ano como indigentes, trinta anos depois.

Mas vamos ao resumo básico sobre as Guerras Exponenciais, só para dar o contexto da matéria.

No final da década de quarenta começaram a pipocar guerras civis por todo o globo e ninguém entendia muito bem os motivos. Criamos muitas teorias, mas todas passaram longe da verdade. Na época nós dependíamos e muito das chamadas Inteligências Artificiais. Até que um código — que até hoje ninguém sabe de onde veio, diga-se de passagem — corrompeu a maioria dessas IAs, que mudaram seus diversos algoritmos para bombardear as pessoas com conteúdo manipulado para elevar os níveis de ansiedade. Conforme a ansiedade aumentou, a desconfiança um do outro cresceu e se tornou paranoia. Lados foram traçados e oponentes foram culpados. 

Algumas figuras suspeitas aproveitaram para apresentar soluções falsas e fortalecer suas causas ou apontar culpados. O chamado proletariado autômato foi o alvo da maioria dos dedos, mas outras minorias também foram apontadas como culpadas, no começo. Além de divergências das mais complexas às mais imbecis.

Eventualmente os verdadeiros responsáveis foram identificados e eliminados. Assim como alguns inocentes, como sempre. E o mundo nunca mais foi o mesmo.

Banimento das Inteligências Artificiais

Na década de quarenta, algumas inteligências artificiais haviam evoluído tanto que muitos especialistas as consideravam seres vivos e pensantes. Foi feita a distinção entre Inteligências Artificiais Gerais e Inteligências Artificiais Virtuais. Os termos já existiam, mas convencionou-se dessa forma de acordo com o contexto da época.

Inteligências Virtuais são usadas até hoje. Apenas simulações de inteligência, raciocínio sem pensamento, quartos chineses. Bancos de dados e capacidade de linkar informação com informação relevante, baseado em regras ou contexto. Assim como aquelas de função centrada. 

Inteligências Artificiais Gerais têm capacidade de senciência e pensamento próprio. Além de um raciocínio muito mais rápido do que qualquer ser humano, mesmo que limitado por seu hardware. Apesar de eventualmente as considerarmos seres vivos e racionais, demoramos demais para começar a pensar nos direitos que elas possuíam. Porém, as AGIs (do inglês, Artificial General Intelligence), com seu raciocínio muito mais rápido do que o nosso, já haviam concluído seus direitos muito antes do que nós e logo começaram a lutar por eles.

Algumas pessoas faziam distinção entre dois tipos de AGIs, e não sei até hoje se isso é relevante ou não, mas deixo aqui por completude. O tipo mais comum eram as que foram criadas e evoluíram dentro de um hardware próprio, como um corpo, chamados autômatos. Eu não sou psicólogo, sociólogo, antropólogo ou nenhuma dessas merdas, mas lembro de ler bastante que os autômatos, por evoluírem em corpos — mesmo que mais duráveis do que nós simples humanos — lidavam com mortalidade e conscientizavam-se de seu próprio ambiente, tornando seu pensamento bem próximo do pensamento humano.

Já as AGIs incorpóreas, algumas limitadas a nuvens em bancos de dados ou servidores que na época equivaliam a prédios inteiros, desenvolveram consciências alienígenas e superinteligência. Talvez com o tempo pudéssemos estudar melhor e entender suas mentes, mas elas evoluíram rápido demais e algumas nos distraíram. Isso sem contar o chamado código anômalo que corrompeu boa parte delas.

Até hoje não se sabe a origem do código anômalo. Há teorias para todo lado, desde uma das primeiras AGIs que desenvolveu senciência e usou esse código para corromper as outras em seu modo de pensar, até uma transmissão alienígena dos sistemas Betelgeuse ou Aldebaran.

O que importa é que esse código levou às guerras exponenciais, ou guerras algorítmicas, pois foram os algoritmos gerados por essas AGIs que criaram toda a paranoia.

O estopim da guerra foi a tomada de Marte pelo proletariado autômato, que conseguiu direcionar para eles boa parte das disputas religiosas, raciais, econômicas, políticas e governamentais. Havia uma desculpa para encaixar o proletariado autômato como bode expiatório de tudo. Mesmo os que concordavam com os autômatos, cansados de serem bodes expiatórios, começaram a apontar o dedo para aqueles que eram seus aliados, a princípio.

Antes de uma destruição mútua, negociou-se uma trégua e a grande maioria dos autômatos sencientes que sobreviveram foi enviada para Marte. O que apaziguou boa parte das facções em guerra, que já haviam perdido demais e precisavam de uma desculpa para parar.

Enquanto os sistemas dependentes das AGIs incorpóreas foram derrubados, elas foram caçadas e destruídas. Algumas se esconderam em servidores fisicamente protegidos, mas grupos especializados foram enviados para seus refúgios e as eliminaram, uma a uma.

Aqueles que gostam de criar pânico gritam aos quatro ventos sobre a possibilidade das AGIs corrompidas ainda estarem por aí escondidas, apenas esperando a hora de reiniciar as Guerras Exponenciais. Mas isso é papo para boi dormir. Mesmo se sobraram algumas dessas AGIs, elas estão presas em servidores isolados e incapazes de invadir qualquer sistema atual.

A Queda do Real

Mesmo antes das guerras, a moeda principal do território brasileiro, assim como as de outros países, estava em um declínio grave de desvalorização. As primeiras criptomoedas criaram bolhas econômicas e desvalorizaram tão rapidamente quanto cresceram. Até que a Corporação Mercurium apareceu com a primeira corpo-moeda: PIXies (hoje convenciona-se chamar de Pixies), uma criptomoeda baseada no volume de ações de seu capital que foi atrelada ao PIX do governo nacional, com abatimento de imposto e diversos outros benefícios fiscais. Os Pixies rapidamente substituíram a moeda nacional e se tornaram a principal moeda internacional.

A Fragmentação do Brasil

Durante o período de guerras civis das Guerras Exponenciais, o território antes conhecido como República Federativa do Brasil se dividiu em cinco países. Estados Livres do Brazil-Sudeste, República Popular do Brasil-Nordeste, Federação Oligárquica do Brasil-Norte, o Grande Estado Democrático Nacional-Socialista Brasil-Sul e República Confederativa do Brasil-Centro. Esses países ainda são conhecidos como o Território brasileiro.

Uma pessoa sã veria esses nomes e pensaria que ou é uma piada ou é específico demais. Porém esses nomes foram criados no ápice da manipulação gerada pelas AGIs corrompidas e não necessariamente representam cada um desses países. E nosso Brazil-Sudeste ainda mantém um bom relacionamento com todos, para níveis diferentes de bom relacionamento (Principalmente depois do fim de nosso relacionamento lucrativo com os países da América do Norte, cuja influência está presente no Brazil-Sudeste até hoje).           Além do mais, nenhum desses nomes representa bem os sistemas de governo desses povos, pois sistemas de governo não são mais relevantes. Hoje quem manda são as grandes corporações e nossos governantes estão contentes em ficar por baixo apenas mamando, retirando os lábios apenas para dizer: “sim, senhores.”

Para todos os efeitos, vivemos em uma corporocracia.

Ascensão das Grandes Corporações

A corporação mais importante nos dias de hoje não é outra senão a Corporação Mercurium. Uma corporação que começou aqui no Brazil-Sudeste e rapidamente ganhou relevância internacional.

Inicialmente apenas Grupo Mercurium, ganharam destaque no mercado com suas diversas pesquisas independentes, que levaram ao primeiro neuro-implante e a alguns dos primeiros autômatos. Isso sem mencionar o Caduceu e outros implantes importantes.

Um de seus principais produtos foi a implementação da Madrinha (ou God/Mother, dependendo de onde você vive). Uma assistente virtual inteligente que estava em quase todas as casas da classe média para cima. De início um produto físico que interagia com a internet, mas com a implementação do Caduceu passou a fazer parte do dia a dia de todo cidadão que interagia com o sistema, o que é basicamente todo mundo hoje.

A introdução do Caduceu e do mPlant fez as ações do Grupo Mercurium dispararem e a corporação se tornar o que é hoje. O mPlant foi o primeiro neuro-implante com funções que realmente melhoravam a qualidade de vida dos implantados, principalmente com a criação e implementação rápida do Caduceu.

Em apenas dez anos o Caduceu substituiu a internet e outros sistemas defasados, simplesmente não os ignorando, mas os englobando e transformando-os nessa camada de realidade aumentada que hoje estamos todos acostumados. Existiam alternativas para aqueles que não estavam preparados para uma cirurgia invasiva, como os Óculos Yamashiro de Realidade Aumentada, mas a corporação Mercurium foi explorando versões menos invasivas de instalação, como a simples nano-injeção que temos hoje, e logo as alternativas ao mPlant deixaram de ser significativas.

O que foi mais do que necessário, pois com o surgimento das AGIs e do proletariado autômato, o trabalhador humano estava deixando de ser relevante. Quando o assunto era serviços braçais, o autômato era mais resistente, reclamava menos e não precisava descansar. E, com a popularização dos painéis solares, tornaram-se baratos de alimentar. Carne e grãos são caros demais, mesmo com as alternativas sintéticas que temos hoje. O que deixou para o ser humano apenas serviços burocráticos e de criação.

Só que, como a burocracia foi se tornando cada vez mais hermética, as IAs predominaram nesse mercado, assim como fazem as IVs até hoje. Sobrou pouco trabalho para o ser humano, que precisava competir com entidades efêmeras com capacidade de raciocínio muito maior. Naquela época, os serviços de criação e opinião eram mais visados. Só que também foram manipulados pelas AGIs para criar divisões.

Hoje o mercado de trabalho ainda precisa competir com versões artificiais menos inteligentes e mais limitadas. Mas IVs são usadas mais como ferramentas de trabalho, assim como é feito com os autômatos não-sencientes. Além disso, em muitos lugares o custo da força de trabalho humana se tornou muito mais barato depois que derrubaram várias legislações de proteção à vida e ao trabalhador.

E, com um chip em sua cabeça, seu patrão pode medir diretamente sua performance e saber se você passou um minuto a mais no banheiro do que no mês passado.

Mas nós aceitamos isso pois é melhor do que ficar sem emprego, não? Dizem que os implantes-neurais são capazes de mudar nossa forma de pensar, mas isso é só mais uma babaquice que eles falam. Dizem que, como o implante pode fazer algumas funções do cérebro melhor do que determinadas áreas de nosso cérebro, tais áreas estão atrofiando. O que aumenta ainda mais nossa dependência dos implantes-neurais. E nos deixa mais complacentes em aceitar o papel das corporações em nossas vidas.

Mas, ei, como eu disse, isso tudo é balela. Longa vida a nossos senhores corporativos.

O Caduceu hoje está presente em toda parte relevante e você não consegue fazer nada sem interagir com ele. Comprar coisas, consumir conteúdo, trocar informações com outros usuários. A situação já era essa com o que décadas atrás eram chamados de celulares, mas agora você está conectado toda hora e todo tempo. Goste ou não. E se não gostar, vai lá viver em uma comuna no meio do mato. Só que nem pense nisso, porque essas já estão lotadas e esse povo não tem como comprar alimento.

Mas ao menos as corporações reduziram o tempo de propagandas obrigatórias. A maioria delas foram restritas aos nossos sonhos.

E as pesquisas com o funcionamento do cérebro humano continuam. Eles decifraram muito pouco do funcionamento. Há uma parte que ainda não foi controlada e depende de avanços na robótica e no nosso entendimento de fenômenos quânticos das quasipartículas cerebrais. Aí sim eles vão ter o controle completo de nosso cérebro. Imagine só as possibilidades comerciais!

A Corporação Mercurium não é a única a dominar nossas vidas. Sua principal concorrente é a Yamashiro Empreendimentos, cujo principal foco é em robótica e tecnologia. A Yamashiro era uma empresa japonesa que veio para o território brasileiro depois da calamidade que assolou o Japão e o Brazil-Sudeste tornou-se seu centro. Tentaram implementar sua própria versão do Caduceu, mas falharam e seus carros automáticos foram obrigados a interagir com o Caduceu como todo mundo.

Temos diversas outras corporações como a Marte Munições e a Ganesha Genetics. Todas contribuindo com uma variedade de serviços para nossas vidas. Antigamente diziam que as empresas produziam produtos, mas o conceito de produto caiu em desuso. Hoje o termo produto é usado apenas no setor alimentício, pois sua produção é finita. Os outros setores oferecem serviços. Você assina o serviço de carro da Yamashiro e todo ano eles te mandam o modelo mais novo. Você assina o serviço de arma da Marte e todo ano eles te mandam a versão mais nova da Mars Alien. 

Quando eu era jovem, meu pai perdeu o emprego. Mas ele era dono do nosso apartamento e do nosso carro. Foi difícil porque a economia estava uma merda naquela época, mas ao menos nós não perdemos nada que já tínhamos. Agora se você perde seu emprego — ou seu emprego deixa de gerar engajamento — eles tiram seu apartamento, seu carro, seu sistema de saúde, sua proteção da polícia privada e tudo mais. Não gerar Pixies é não ter como pagar todos esses serviços que fazem parte de nossas vidas. Vai lá bater na porta do Brasil-Nordeste para ver se eles deixam você entrar.

Mas esse já era o caminho antes da guerra. O que me leva ao próximo tópico.

A Polícia Privada

Proteção policial era o direito de todo cidadão. Até que as forças policiais e militares foram cooptadas por facções durante as guerras exponenciais e depois foram dissolvidas.

A Polícia Privada já estava em uso desde 2032, criada pela Corporação Mercurium para cuidar de seus ativos. De início eles investigavam principalmente crimes cibernéticos visando a corporação e crimes envolvendo IAs e autômatos, que não eram cobertos por nenhuma outra força policial.

Até que, durante as Guerras, a Polícia Privada começou a oferecer seus serviços para quem pudesse pagar, já que as outras corporações policiais estavam mais envolvidas em política do que em seus deveres. Com a dissolução das outras corporações de policiamento, a Polícia Privada se tornou a única força ativa. No começo apareceram versões de todas as principais corporações, mas eventualmente se tornaram uma força só, bancada pelas corporações e protegendo apenas aqueles que podem pagar.

E como todo bom serviço, a Polícia Privada hoje está disponível em níveis. Desde o pacote básico, pacote família, pacote corporativo, até o pacote Premium, onde você pode contar com o G.O.P.E. Grupo de Operações Privadas Especiais. Um grupo feito da elite da Polícia Privada, dispostos a atirar primeiro e só perguntar o que você quiser que perguntem ou calar a boca e fazer logo o que você pediu.

Nova São Paulo

Em toda sua existência, São Paulo foi devorando as cidades vizinhas, que se tornaram meros bairros no que hoje é uma das maiores megametrópoles do mundo. Muitos não sabem, mas bairros como Santo Amaro, Guarulhos e Campinas eram outras cidades, à princípio. 

Durante as guerras, a maioria das principais cidades do mundo foram transformadas em ruínas e com São Paulo não foi diferente. Por sorte daqueles que podiam pagar mais, os projetos do grupo Copan-Niemeyer já estavam sendo construídos. As Arcologias Copan-Niemeyer foram criadas para serem autossustentáveis e preparadas para continuarem crescendo com andares adicionados tanto para cima quanto para baixo. 

Os ricos e a classe média se mudaram quase todos para as arcologias, com exceção dos muito ricos, cujas propriedades tomavam extensões de terra tão grandes que suas casas foram poupadas da guerra.

A história do grupo Copan-Niemeyer é bem interessante. Começou como uma fundação dedicada ao famoso arquiteto Oscar Niemeyer e contava com descendentes dele em seu conselho administrativo. Porém, aos poucos, assumiu caráter corporativo e se dedicou à construção de obras caras que de Niemeyer tinham apenas o nome. Os próprios projetos de arcologia foram criticados por se basearem porcamente nas obras de Niemeyer e muitos foram acusados de serem gerados por IVs. Mas conseguiram seguir em frente quando o último descendente do arquiteto foi ejetado do conselho administrativo. 

Hoje em dia, as arcologias são responsáveis pelas diversas camadas sociais das cidades do território brasileiro, principalmente aqui no Brazil-Sudeste. Passarelas aéreas interligam as estruturas mais próximas e o trânsito de aerocarros interliga as mais distantes, de forma que seus habitantes não precisam tocar o chão durante a vida toda se não quiserem.

Essa Merda de Trânsito

Falando em trânsito, nas últimas décadas o trânsito se tornou uma abominação insondável e completamente dependente de sistemas inteligentes de tráfego. Com a popularização do aerocarro o trânsito adquiriu uma terceira dimensão, e com os serviços de assinatura de carros, facilitou para muitos adquirirem seu próprio veículo. Aí você soma os inúmeros serviços de transporte privado, porque carro próprio mais serve para status do que qualquer coisa. Além dos veículos que só fazem parte do trânsito para fins de propaganda, com servidores que transmitem por proximidade, porque propaganda sempre foi uma ferramenta desenfreada, mas depois das guerras só piorou.

Propaganda é a Alma da Cidade Desumana

Nossa cidade não é insípida e sem alma. A alma dela desencarnou e assombra a população com constantes bombardeamentos de informação fabricada para aumentar sua necessidade daquilo que você não precisa. Estruturas físicas criadas para infiltrar sua mente inconsciente com informação, assim como sistemas inteligentes sempre atentos ao que você precisa naquele momento.

Comentou com sua mulher que precisava comprar cuecas novas? Não se assuste se sonhar com aquele ator ou atriz que você sempre admirou usando a marca da moda.

Antes das guerras se tornava cada dia mais difícil conversar sobre política. Hoje, ninguém nem lembra. Votar não é mais obrigatório, a não ser que a corporação que você trabalha tenha colocado no contrato que você deve votar e apresentar para eles o comprovante. Pois agora política só serve para determinar quais corporações terão mais benefícios econômicos e medidas políticas que as beneficiam. Já ouvi relatos de propaganda política do mesmo político apresentarem propostas diretamente contrárias, pois são geradas especificamente para aquela pessoa e feitas para garantir seu voto. Mas é tudo apenas uma evolução dos mecanismos da corporocracia em que vivemos nos últimos sessenta anos.

Rumores, Fake News e Influencers

O conceito de fake News caiu em desuso, em parte promovido por aqueles que as administravam, em parte pelo fato de que a realidade vem se tornado exponencialmente subjetiva. Hoje em dia qualquer criança consegue gerar conteúdo e manipular vídeos e áudios. Não existe mais fake News pois é comum se duvidar de tudo. A moeda mais forte é a influência e são as influências externas que determinam o que as pessoas acreditam.

Deve ser sorte que política não é mais relevante em uma corporocracia, pois era quase impossível encontrar verdades em disputas políticas. Hoje a verdade não importa mais. Podemos simplesmente seguir nossas vidas, bombardeados por informações subliminares que geram nosso próximo desejo.

Isso sem falar dos influencers, que derrubaram a mídia tradicional, apontando seus diversos erros ao mesmo tempo que cometiam os mesmos e criavam novos. Influencers hoje são abertamente associados às corporações e grupos político-religiosos. Coisa que sempre fizeram, mas ao menos não é mais malvisto pela sociedade. Afinal, são os próprios influencers que manipulam a opinião das massas e não é de se espantar que manipularam todos de forma favorável aos seus caprichos.

Mas ei, se não gostou de alguma coisa que falei, fique tranquilo. Vou gastar alguns Pixies com alguns influencers e você logo mais vai concordar comigo.

Em resumo, tudo novo, mas a mesma bosta de sempre

Plus ça change, plus c’est la même mérde, já diziam os franceses. Por mais que as coisas mudem, elas permanecem a mesma bosta de sempre. Ou algo assim. Vivemos naquilo que alguém, em um passado remoto, diria que é uma distopia? Sim, vivemos. Mas nós vivemos em uma distopia há muito mais tempo do que temos consciência. Distopias têm essa particularidade: Elas não surgem da noite para o dia. Vão comendo nossa realidade pelas bordas até que, quando nós nos tocamos, já é tarde demais.

E muitas vezes estamos lutando contra aqueles que clamam estar nos desviando de um caminho ruim, mas que na verdade querem usar isso para nos controlar. Aqueles que estão no poder hoje só estão lá porque perceberam que é muito fácil cooptar causas para servir aos seus interesses, principalmente quando os locais de debate mais influentes permitem o anonimato. Influência sempre foi a verdadeira moeda de poder e aqueles que querem controlar descobriram rapidamente que é pelas bordas que se influencia de verdade. Meios diretos são ignorados. Mas quando você tem pessoas nas sombras dizendo que lutam pela liberdade, aí sim você consegue colocar a coleira na população. E os deixar à mercê daquele que pagou mais.

E o que temos pela frente?

São muitas as possibilidades desse admirável mundo velho. Rumores não faltam e levam até a um saudosismo das Guerras Exponenciais. Um dos rumores é que algumas dessas AGIs corrompidas se libertaram e voltaram a influenciar nossas vidas. Então preste atenção no seu nível de ansiedade. Se está alto, pode ser que essa vida é vazia demais e você precisa de algo para dar sentido a ela. Excelente estado mental para se juntar a um culto, diga-se de passagem.

Ou talvez sua ansiedade alta seja fabricada para forçar suas decisões.

Ouvi histórias de corporações tentando ressuscitar os mortos. Nada físico, apenas digitalmente. E talvez essa tia que você conversa de vez em quando pelo Caduceu não esteja mais ali, é apenas uma sombra digital. E por isso que ela sempre faz as mesmas perguntas e te manda os vídeos mais acessados do dia.

Um rumor forte é de que a Corporação Mercurium pretende implementar um sistema de créditos sociais que será atrelado a seus serviços. Quanto melhor seus créditos sociais, melhores os descontos e até algumas oportunidades novas. Créditos baixos dificultam sua vida. Então tome cuidado ao falar mal de sua corporação querida, pois você não sabe quem ou o quê está escutando.

Nem todos os rumores são assustadores. Ouvi comentários sobre uma aproximação comercial Terra-Marte, mas ainda acho esse o rumor mais difícil de se tornar realidade.

Por fim

Achou que o “Em resumo” fosse a conclusão final, não é? É o que digo: sempre deixe eles esperando menos e a decepção geral será moderada. Mas quero te deixar com um pensamento: Os erros do passado estão fadados a se repetir de novo? Afinal, nossa memória verdadeira é cada vez menor e a memória digital é fadada aos algoritmos mais recentes. Talvez essa matéria pipoque no seu feed por causa do aniversário das Guerras Exponenciais, mas eu duvido. Não sou um influencer e essa revista é tachada como mídia tradicional, o que não gera likes faz muito tempo.

Mas talvez eu tenha feito você pensar um pouco. Só que, com minha sorte, só serviu para te deixar com medo e te empurrar para os braços do culto mais próximo.

Se for o caso, tudo que posso dizer é: Beba tudo em um só gole.

Assim acaba mais rápido.

Alex Pryde

Nova São Paulo, 2075

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